A lenda alemã fala sobre um homem extremamente culto e
inteligente. Fausto, descrito por Goethe, segundo Marsahll Berman, em seu livro
Tudo que é sólido desmancha no ar, é o iluminista perfeito. Durante toda a sua
vida, Fausto se dedicou aos saberes do mundo: Estudos sobre medicina, política,
cultura. Até que chegou o dia em que Fausto sabia tudo o que havia para saber.
Sem perceber, ao dedicar-se tanto para conhecer sobre tudo,
Fausto perdeu contato com o mundo externo. Ele não mais convivia com pessoas e embora
soubesse o significado do verbo viver, não mais o sentia. No primeiro capítulo
de seu livro, Berman discorre sobre a vida e a história fáustica e sobre todas
as transformações por ele vividas.
A lenda conta que Fausto, ao perceber que sua sabedoria havia
chegado ao ápice não só da sua mente, mas da possibilidade da época, percebe
também que não havia vivido. E sentindo-se perdido e desesperançoso, decide
pelo suicídio. Mefistófoles, conhecido na cultura ocidental como o demônio,
aproveita-se da fraqueza de Fausto e o tenta. A partir daí, as sucessivas
mudanças sofridas pelo personagem são todas relativas.
O propósito fáustico representa o processo pelo qual a sociedade
tem que passar para se desenvolver. Mas não só isso. A fase inicial, chamada
por Berman de ‘O Sonhador’, é a mais subjetiva e pessoal de toda a história, em
que é ressaltada a importância do conhecimento individual e pessoal e que, se
transpassada para toda a coletividade, reflete uma mudança social. A Alemanha
da época ainda estava muito ligada ao feudalismo. A ânsia de transformação do
autor é traduzida na história de Fausto, em que a mudança do mundo é o maior de
seus desejos.
A segunda metamorfose do personagem é o coração da obra. Antes
inseguro nesta fase, Fausto transforma-se num conquistador e toda sua atenção é
direcionada à Gretchen – uma jovem camponesa que nada mais é que uma imagem do
protagonista em sua infância, sua inocência, sua capacidade de sonhar e seu
pequeno mundo. O romance vivido entre os dois personagens é uma representação
de um romance impossível, cujos limites foram determinados pela sociedade. Não
há ascensão social; não há direitos femininos.
O protagonista se apaixona por um ideal de mulher. Sua visão de
Gretchen era, na verdade, uma visão, uma projeção de si mesmo como criança.
Quando Fausto viu Gretchen como ela realmente era, uma mulher com desejos e
anseios próprios, ele a abandonou. A destruição do conceito de mulher de Fausto
implica na destruição como parte necessária do processo humano de desenvolvimento.
“O crescimento humano tem custos humanos; qualquer um que o deseje tem que
pagar o preço, e o preço é altíssimo.” P.57
A morte de Gretchen é um capítulo importante desta metamorfose.
Enquanto para muitos críticos Gretchen morre como uma mulher conformada, Berman
a traduz como quase uma feminista. Sua morte foi a única maneira encontrada
pela personagem de enfrentar a sociedade da época. Ao rejeitar a ajuda de
Fausto, Gretchen rejeita também o homem machista, que oferece ajuda por pena e
não por amor. Sua condenação foi o último obstáculo pelo qual Fausto precisava
passar para chegar à fase que é considerada o seu ápice: a fase política,
chamada por Berman de O Fomentador.
O que ocorre nesta etapa é uma transformação material do mundo
e, ao mesmo tempo, das forças econômicas, políticas e sociais que dirigem a
sociedade. Até então, todas as transformações comentadas, embora refletissem
transformações sociais, foram, na verdade pessoais. E daqui em diante, Fausto
“expande o horizonte de seu ser, da vida privada para a pública, da intimidade
para o ativismo, da comunhão para organização. Lança todos os seus poderes
contra a natureza e a sociedade; luta para mudar não só a sua vida, mas a vida
de todos.” P. 61
A narrativa de Goethe foi programada para que o leitor
percebesse a interiorização do “demônio” pelo protagonista. Enquanto tentava
pôr em tentação um simples humano, Mefisto acaba transformando Fausto em uma
espécie de deus, um criador. A comprovação disso vem com a construção de uma
cidade no pântano, com pessoas ‘criadas’ pelo protagonista. “Nada de sonhos e
fantasias, nem sequer de teorias, mas programas concretos, planos operacionais
para transformar a terra e o oceano.” P. 62
Como parte da construção dessa versão política de Fausto, Berman
traz à tona a importância do sofrimento e da exploração para que o progresso
ocorra e que exprime um dos conceitos de modernidade: a busca incessante pela
transformação. “Fausto vislumbra, e luta para criar, um mundo onde crescimento
pessoal e progresso social possam ser atingidos com o mínimo de sacrifícios
humanos. Ironicamente, sua tragédia decorre exatamente do seu desejo de
eliminar a tragédia da vida. É como se o processo de desenvolvimento, ainda
quando transforma a terra vazia num deslumbrante espaço físico e social,
recriasse a terra vazia no coração do próprio fomentador. É assim que funciona
a tragédia do desenvolvimento.” P. 66 e 67.
Por: Camila Garcia e Mariana Chiré
Publicado originalmente no blog:
Teoria da Comunicação II